Sobral Pinto

Heráclito Fontoura Sobral Pinto (1893-1991) foi no sec. XX um dos arquétipos do jurista brasileiro. Justiça não chega a ser um dado do DNA da nossa cultura, sendo esta nossa terra propensa a coronéis, ao contrário do que dizia Joaquim Nabuco sobre o povo inglês, que incorporou o sentido do justo, do equilibrado, de direitos e obrigações para cada cidadão, de tudo isso que pede a palavra "fair" e possibilita a vida em sociedade regida há séculos por uma constituição de tradição oral. Porém não nos faltaram homens íntegros em alto quilate, destemidos, movidos a ideal, como este que enfrentou o Estado Novo e seu regime autoritário.

Mundialmente era a década de 1930 tempo de conflito ideológico posto em bases maniqueístas, com o planeta parecendo dividido em dois blocos estanques. Mocinhos e bandidos, o Ocidente da "civilização cristã", um mundo livre a enfrentar o demônio comunista que cometia atrocidades na Rússia desde a Revolução em 1917. O perigo vermelho fertilizava o fascismo autoritário, que se espalhou por todos os países europeus à exceção de cinco nos anos 30. Tal quadro político naturalmente repercutia no Brasil, onde uma ala dos movimentos tenentistas era chefiada por Luiz Carlos Prestes, militar apoiado pela internacional comunista. Em 1935 este grupo tentou um golpe tomando o Campo dos Afonsos, no Rio, mas sendo dominado por tropas legalistas. Getulio pôs o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, aquele mesmo que exigia a foto do caudilho exposta em qualquer escola, padaria, farmácia, etc., a demonizar a imagem de Prestes.

Duas atuações de Sobral Pinto ficaram na história, ambas em frontal contramão no ambiente político nacional que andava alarmado com a ameaça de revolução bolchevique, a qual se imaginava deveria confiscar-lhes os bens, proibir seu credo, bloquear suas tribunas, etc. Prestes foi preso, confinado a um quartel, em cela onde não batia sol, vigiada 24 horas por dia. Nas cortes Sobral enfrentou o regime autoritário cuja mão forte acabou segurando a garganta do país durante 15 anos. Outro caso notório seu foi o de Harry Berger, alemão e militante de esquerda caído nos calabouços de Felinto Muller e barbaramente torturado. Ora, Sobral invocou para este caso o dispositivo que sobrava na constituição: a lei de proteção aos animais.

Em ambos os casos a primeira resistência vencida por Sobral, em causa que, aliás, não lhe trazia vencimentos, ficava em seu íntimo, sendo ele um católico de missa diária e os réus bolcheviques declarados. Mas estavam em jogo pessoas e direitos humanos inalienáveis.

Reagindo às ações de Prestes Getulio em 1937 manobrou e impôs um regime de exceção declarado, fechou o Congresso, suspendeu os direitos individuais e namorou uma aliança com o Eixo até que Franklin Roosevelt o encantasse com a criação da primeira usina de aço brasileira, em Volta Redonda. Por pouco não cerramos fileiras com Hitler e Mussolini.

Outra causa defendida por Sobral, já um par de décadas adiante, tratou de interesse público, tendo todo cidadão interessado na guarda das tradições urbanas cariocas lhe ficado devedor. Graças a Sobral Pinto foram preservados os prédios na arborizada Rua da Carioca, aquela que nasce no vanderroiano monumental da sede do BNDES e, voltando um século, passa diante de construções emolduradas em pedra de cantaria. Elas hospedam comércio variado, lojas de instrumentos, restaurantes e cafés pitorescos. Pois Dr. Sobral conseguiu, sem aceitar honorários, proteger dos buldozers no governo Carlos Lacerda, que rasgavam a cidade velha para modernizá-la, esta rua tão significativa, tão parte integrante da memória da cidade. Agradecidos, os donos daqueles pequenos comércios fixaram junto à entrada da estação de metrô Carioca uma placa em homenagem a Sobral Pinto.

Sobral foi dos principais companheiros de Alceu no Centro Dom Vital. Esta associação fundada em 1922 por Jackson de Figueiredo pretendia ser um pólo, uma presença intelectual católica face ao Brasil crescentemente positivista e agnóstico. No centro uma dúzia e meia de sócios mais assíduos reuniam-se semanalmente para ouvir conferências sobre temas culturais leigos e depois debater. Os temas eram todos seculares e variando em ampla escala, mas se queria guardar sobre eles uma perspectiva cristã, ie, tratá-los na ética do humanismo cristão. Não se imagine apologia religiosa explícita porque o grupo era intelectualmente exigente. A propósito dos temas escolhidos antes se poderia falar de estímulo à curiosidade pelo mundo do que tentativa de convencimento confessional. As palestras versavam sobre arte, urbanismo, sindicalismo, música, cinema, poesia, teatro, literatura, economia e humanismo, etc.

Assíduo e participativo no centro, sempre disposto a assumir tarefas, Sobral era colaborador regular na revista do centro, A Ordem.

Atuou também como espécie de consciência adicional de Alceu, com máxima franqueza, mais preocupado com a verdade do que convenções sociais, embora se mantendo cordial e lhano. Se alguém não estiver convencido disto, que abra a carta em alceuamorosolima.com.br que trata de uma recepção em 1938 na Embaixada do Japão, oferecida pelo embaixador Sawada, na passagem pelo Rio do Almirante Yamamoto. O militar oriental era católico e declarava-se desejoso de homenagear os católicos do Brasil. Pois Sobral abre seu peito, declina o convite em carta, declarando com casca e tudo à representação estrangeira: não compareceria por considerar a real ambição japonesa expansionista. Sobral queria que se protestasse contra as atrocidades cometidas naquele momento pelos japoneses que invadiam a China. Polida mas assertivamente Sobral Pinto recusa o convite para a recepção, cuja atendia não apenas a interesses de estratégia bélica tornada clara uma trinca de anos depois em Pearl Harbour, como ainda à propaganda da imigração japonesa ao Brasil, a que muitos aqui se opunham invocando um povo pagão e panteísta.

E ao amigo Alceu, em longa carta bem datilografada, o advogado lamenta seu mundanismo, aquele que movido a salamaleques burgueses da vida social o fazia aceitar o convite.

Essa franqueza sobralina era movida pela verdade e não por conveniências, já que o titular não focava nuances e susceptibilidades na amizade pessoal, nem andava a construir alianças corporativas ou políticas que o ajudassem a vencer causas bilionárias do direito econômico nas cortes. Mais agradável para o convívio dos dois amigos teria sido evitar o tema conflitante, ir tratar de mil outros assuntos que os interessavam. Afinal Alceu tinha acesso a gente poderosa, era potencialmente um aliado muito influente, por que não passar à volta dos problemas? Mas Sobral não temia ladeiras, embora argüisse sem amargura.

Sobral era homem de uma advocacia tão destemida quanto tosca em recursos materiais. Entrevistei-o aí por 1988 para uma biografia de Alceu. Já nonagenário e famoso o jurista ainda despachava em um velho escritório no centro do Rio, Rua Debret 79, sala 307, cenário acanhado, mais para filme em preto e branco. Local apertado, escrivaninha quase esbarrando na divisória de vidro, móveis espartanos em madeira surrada, vetustos arquivos de aço, um único aparelho de telefone preto, bojudo e pobre de recursos, água guardada numa moringa. A idade não comprometia o sentido de indignação no rábula, alguns temas o inflamavam, eram brados mais que resposta o que proferia.

  Xikito Affonso Ferreira
  xikito@iaaf.com.br
  Bahia, mar11