Os anos de aprendizado de Tristão
Antonio Gonçalves Filho
É possível identificar no apostolado de Tristão de Athayde (1893-1983), um católico convertido, certos traços de um discurso ideológico que nada tem que ver com o homem seduzido pelo fascismo nos anos 1930, como, por exemplo, sua adesão à filosofia do distributismo, uma terceira via da ordem econômica que transcende o socialismo e o capitalismo. O inglês Chesterton (1874-1936), sua referência intelectual, era um defensor da distribuição equitativa da propriedade. Dizia mesmo que “o problema do capitalismo é que não há capitalistas suficientes”. Tristão de Athayde, ou Alceu Amoroso Lima, seu nome antes da conversão, em 1928, diria mais: que o distributismo, ao condenar a concentração de propriedade, seria capaz de salvar o mundo de um câncer que contagia toda a civilização burguesa criada pelo poder industrial transnacional, que transformou todos em obedientes consumidores, extinguindo histórias particulares e nacionais. Só por isso, o livro que seu neto Xikito Affonso Ferreira acaba de lançar, Histórias de Meu Avô Tristão – A Biografia de Alceu Amoroso Lima (Azulsol Editora), já seria leitura mais que recomendável nestes tempos amargos.
De início, é preciso esclarecer: não se trata de uma hagiografia. O neto de Tristão é exemplarmente crítico. Não lhe passou pela cabeça omitir fatos escabrosos da vida do avô, como a sedução fascista, os aplausos ao ditador Getúlio Vargas e elogios ao seu truculento chefe de polícia, Filinto Müller. Esse era o cristão convertido dos anos 1930, que, identificado com a Action Française e o regime do general Franco, ainda caiu na conversa integralista de Plínio Salgado, imaginando que, ao combater os comunistas, como faziam esses, a fé e a tradição estariam a salvo. Trinta anos mais tarde, longe desses estrepitosos grupos de doutrinação, Tristão, sem abdicar da autoridade de autor que lhe foi conferida como um dos maiores críticos literários do modernismo, ou do papel histórico de guia espiritual da Nação, condenaria, em 1964, os tolos e terroristas que tentaram fazer do Brasil uma República de Saló tropicalista.
Tristão foi um dos mais ativos combatentes do golpe militar de 1964. Era uma autoridade da oposição, a Plaza de Mayo das mães desesperadas, que a ele recorriam em busca de filhos desaparecidos. Era também o legalista que denunciou o arbítrio do Estado fantoche, a escalada de um sistema disposto a assimilar tudo e esmagar toda diversidade.
Enquanto o desespero, em forma de contestação ideológica, reagia à injustiça de forma violenta, Tristão, sem fazer distinção entre cristãos e ateus, defendia a todos com extrema sobriedade, em suas colunas semanais publicadas na grande imprensa.
Como agiria hoje Tristão, enfrentando o clima de ódio e a suprema irracionalidade que domina parte da sociedade brasileira? Xikito, seu neto, arrisca um palpite: “Ele estaria apoiando a Operação Lava Jato, mas, ao mesmo tempo, faria um alerta para não se crucificar apenas um lado da equação”. A biografia de seu avô, aliás, busca a simetria, o equilíbrio, apresentando Tristão não como moralista ou asceta, mas um espírito “dionisíaco” habitando um corpo cristão. Ora, Dionísio é um deus benigno e, ao mesmo tempo, um deus que se transforma, disposto a desafiar a sociedade fundada sobre a razão. Xikito mostra que foi a própria incompreensão desse aspecto irracional de Dionísio que levou alguns a etiquetar Alceu Amoroso Lima como um reacionário de direita. Esses não compreendem a graça de Dionísio. Renegam sua liberdade. São Penteus – e há muitos no Brasil – sempre dispostos a promover um linchamento moral para eliminar o diferente. Tristão escapou por pouco.
Educado por preceptores progressistas, como o alemão João Köpke, pioneiro no ensino experimental no Brasil, Alceu escreve sobre ele em seu livro Companheiros de Viagem, revelando que aprendeu a escrever e a compor sem saber uma simples regra de gramática. Nem precisava. O método para o ensino de leitura partia da denominação das letras pelo seu valor, uma cartilha bem diferente da escrita por Silva Jardim, que condenou a de Köpke por seu apego às coisas concretas. Outro professor de Alceu foi o compositor cearense Alberto Nepomuceno, prova da sólida formação do escritor que, aos 10 anos, foi enviado pelo pai a uma escola pública para ter educação democrática.
O livro do neto de Tristão, uma biografia, pode ser lido como um Bildungsroman, como Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. E é mesmo um romance de formação, à maneira de Kikito Affonso Ferreira. Sem emular Goethe, mostra como o avô, que sofreu bullying na escola, acabou se aproximando dos primos para formar com eles um clube, como o Turmgesellschaft (a Sociedade da Torre) do clássico de Goethe. Da leitura dos escritores naturalistas a Proust, passando pelos primeiros escritos de Freud, o grupo das Duas Pontes, dos primos Amoroso Costa, devorava tudo o que de melhor produzia a Europa (inclusive os ataques anticristãos de filósofos e literatos).
Amigo de Mário de Andrade, Alceu foi um dos primeiros a ler os manuscritos de Macunaíma (1928). Escolheu o catolicismo aos 35 anos, justamente no ano de sua publicação, já respeitado como crítico modernista. O neto defende a tese de que essa conversão não foi epidérmica, de fachada. Tristão, o novo cristão, segundo ele, condenou tanto capitalistas como socialistas, defendendo uma civilização ameaçada pelo materialismo. Satirizado por Oswald de Andrade em sua peça O Rei da Vela, como um fanático criptocristão, Tristão nem por isso se negou a visitar o escritor em seu leito de morte, escrevendo depois que o sarcasmo do modernista e seu ódio à Igreja eram a sua forma de amar a Deus. Do catolicismo de espada ao catolicismo fraternal, também Tristão, como Wilhelm Meister, teve um aprendizado sofrido. Mas, a exemplo de Jacques Maritain, seu mentor, concluiu que o humanismo só pode ser integral.
Tende ao absoluto. Essa é a lição de ambos a uma sociedade laica que só percebe a aparência inanimada do mundo.